613 – 681 D.C
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Shan-Tao ou
Zendo, o Quinto Mestre
do Shin-Budismo da Terra Pura, foi um discípulo de Tao-Ch’o,
na China.
Consta que, encaminhado à vida no mosteiro ainda jovem, quando viu um quadro da Terra Pura, desejou lá nascer. Em busca de um sutra que melhor se adequasse a sua sensibilidade espiritual, encontrou o Sutra da Contemplação e com grande alegria se dedicou às meditações indicadas. Em sua obra Comentários sobre o Sutra da Contemplação, refutou os grandes mestres do Caminho dos Sábios, mostrando que mesmo um homem comum pode nascer na Terra Pura, em virtude do Voto do Buda e da prática corporificada no nembutsu. Entre as práticas à disposição dos aspirantes a nascer na Terra Pura, como recitar sutras, visualizar Amida e sua Terra e reverenciá-lo, pregou a predominância da vocalização do nembutsu: dizer o Nome de Amida é igual a aceitar o seu Voto, confiar em Buda, incondicionalmente. Somente Shan-tao tornou clara a Verdadeira Intenção do Buda. Compadecendo-se dos praticantes das boas ações meditativas e não meditativas, e também dos perversos e malvados, Revelou que a Luz é a condição auxiliar e o Nome é a causa do Ir-Nascer. Quando tais praticantes são conduzidos ao Oceano da Grande Sabedoria do Voto Original, São levados a receber, de forma correta, o Coração Adamantino; Depois de alcançarem a sintonia com o Buda em um pensamento momentâneo de alegria, Alcançam o Tríplice Benefício, à semelhança da Senhora Vaidehi, E imediatamente são levados a obter a Eterna Bem-Aventurança da Essência do Dharma. |
Vida e Obra de Shan-tao:
Shan-tao nasceu em 613 em Ssu-chou, na atual Província de An-hui, ou, segundo outra tradição, em Lin-tzu, na Província de Shan-tung.
Viveu no período áureo do Budismo chinês, ou seja, na fase inicial da Dinastia T’ang (618-907), uma das mais brilhantes épocas da História da China. A China, recém-unificada após vários séculos de fragmentação, anarquia e invasões externas, expandia-se então pela Ásia Central e Meridional, abrindo-se a influências estrangeiras (Mesopotâmia, Pérsia, Índia).
Religiões estrangeiras como o Cristianismo Nestoriano, o Zoroastrismo, o Maniqueísmo e, posteriormente, o Islamismo, penetraram no país e foram bem recebidas.
A Capital do Império, Ch’ang-an (hoje Shi-an), era uma esplêndida metrópole cosmopolita em cujas movimentadas avenidas os chineses se acotovelavam com turcos, iranianos, anamitas, coreanos, japoneses, etc. Shan-tao ingressou na vida monástica ainda jovem, dedicando-se, na primeira fase de sua carreira, ao estudo doSutra do Lótus da Lei Excelente (Jap. Hokkekyô) e do Sutra do Ensinamento de Vimalakirti (Jap. Yuimagyô).
Um dia, ele viu uma pintura representando a Terra Pura do Buda Amida e sentiu um profundo anseio de nela ir-nascer.
Visitou o Monte Lu e outros locais sagrados para estudar e praticar os ensinamentos da Terra Pura.
Viveu por vários anos no Templo Wu-chen, no Monte Chung-nan, onde se dedicou à contemplação do Buda Amida e de sua Terra Pura segundo o método conhecido como Pratyutpanna Samadhi (Jap. Hanshû Zanmai) pregado no Sutra do mesmo nome, tendo alcançado algumas visões.
Por volta dos 20 anos de idade, procurou Tao-ch’o e tornou-se seu discípulo.
Dedicou-se profundamente ao estudo do Sutra da Contemplação e à prática das Dezesseis Contemplações nele descritas, que lhe propiciaram visões da Terra Pura e do Buda Amida.
Pregou a Doutrina da Terra Pura em Ch’ang-an e praticou intensamente o Nembutsu jaculatório.
Teria elaborado cerca de cem mil cópias do Sutra de Amida e confeccionado cerca de trezentos mandalas da Terra Pura.
Quando o Imperador Kao-tsung resolveu preparar um nicho para abrigar uma estátua de Mahavairocana no Monte Lung-men, na Província de Ho-nan, Shan-tao foi nomeado superintendente das obras.
Tornou-se conhecido como o “Mestre do Templo Kuang-ming” (Templo da Luz).
Faleceu em 681.
A Doutrina do Quinto Patriarca Shan-tao que, através de uma revolução hermenêutica, possibilitou a releitura do Budismo como uma religião de salvação, a contrastar com a visão até então predominante do mesmo como uma via de libertação ascética e contemplativa.
Por isso Shinran o proclamou como sendo o único a tornar clara a Verdadeira Intenção do Buda: proporcionar a salvação aos ignorantes e perversos através da pregação do Voto Original de Amida.
Criou uma importante escola de estudo e prática da Doutrina da Terra Pura que exerceu uma profunda influência na China e no Japão.
Como veremos, foi o principal inspirador de Hônen, o mestre de Shinran.
Sua obra escrita compreende um tratado doutrinário, o Comentário ao Sutra da Contemplação da Vida Imensurável (Jap. Kanmuryojukyo-sho), e quatro trabalhos sobre liturgia:
1) Louvor ao Serviço do Dharma (Jap. Hôji-san);
2) Portal do Dharma da Contemplação (Jap. Kannen Hômon);
3) Adoração e Louvor ao Ir-Nascer (Jap. Ôjô Raisan);
4) Louvor ao Pratyutpanna (Jap. Hanshu-san).
Privilegiaremos aqui a análise de seu tratado doutrinário:
4. Uma revolução hermenêutica: o Comentário ao Sutra da Contemplação da Vida Imensurável:
Em seu Comentário dividido em quatro livros, Shan-tao realiza uma verdadeira revolução hermenêutica, contrapondo sua leitura pessoal do Sutra da Contemplação à interpretação corrente do mesmo feita pelos mestres de seu tempo, como Chi-tsang (Jap. Kichizô) (549-623) e Chia-ts’ai (Jap. Kasai) (620-680).
Em suma, enquanto os demais mestres viam no Sutra um guia para a contemplação, em conformidade com a visão corrente do Budismo como uma via ascética e contemplativa, Shan-tao considerava o mesmo um anúncio de uma religião de salvação centrada na fé, cujo principal destinatário seria o ser humano profano e ignorante, carregado de paixões e de culpas, representado pela Rainha Vaidehi.
Shan-tao estabelece uma classificação das práticas budistas, dividindo-as em Práticas Corretas e Práticas Diversas.
As Práticas Corretas são as práticas amidistas e as Práticas Diversas compreendem as demais práticas budistas.
As Práticas Corretas são: 1 – Leitura de Sutras; 2 – Contemplação; 3 – Adoração; 4 – Recitação do Nome; 5 – Louvor e Oferendas ao Buda Amida.
Shan-tao privilegia a Recitação do Nome (Jap. Shômyô) como a Prática Principal que conduz ao Ir-Nascer, definindo as outras quatro como Práticas Auxiliares. A Recitação é a única prática por ele considerada eficaz em proporcionar a salvação aos entes profanos e ignorantes, escravos das paixões e carregados de pesadas culpas. Os presentes versículos do Shoshinge sintetizam as idéias de Shan-tao sobre o Nembutsu.
5. Sonhos e Visões: Ao concluir sua obra, Shan-tao esclarece que a mesma lhe foi revelada por um monge que aparecia em seus sonhos. Adverte ainda que a obra deve ser conservada com respeito e cuidado como se fosse um Sutra, nenhuma palavra devendo ser omitida ou acrescentada. Isso me recorda o relato feito por Carl Gustav Jung a respeito de suas conversações com um velho sábio de nome Philemon, personificação das forças de seu inconsciente, detentoras de um saber além da mente consciente, bem como o processo de redação de seus Septem Sermones Ad Mortuos. Devo lembrar também a teoria estruturalista da criação literária que nos remete a casos em que o escritor percebe que sua obra se faz como que por si mesma, à revelia de sua vontade pessoal. Algo semelhante ocorre com a literatura dita “psicografada”, tão popular nos meios espíritas brasileiros, e com o método conhecido como “escrita automática”, preconizado pelo surrealista André Breton.
6. A Dupla Fé Profunda: Dentre as formulações doutrinárias de Shan-tao, é de fundamental importância o conceito de Dupla Fé Profunda, que Shinran transcreve no Livro da Fé (Shin no Maki) do Kyôgyô Shinshô:
A Fé Profunda consiste em crer em profundidade. Temos aqui dois itens. O primeiro consiste em crer profunda e firmemente que sou um ente profano carregado de culpas e males, errante através de nascimentos e mortes em que me vejo mergulhado desde um passado imemorial, sem encontrar nenhuma possibilidade de libertação. O segundo consiste em crer profunda e firmemente que os quarenta e oito Votos do Buda Amida atraem e acolhem os seres viventes que, entregando-se ao Poder daqueles Votos sem a menor dúvida ou hesitação, certamente hão de alcançar o Ir-Nascer.
(Seiten, págs. 215-216)
7. A Parábola do Caminho Branco Entre os Dois Rios: Outra célebre passagem de Shan-tao transcrita por Shinran (cf. Seiten, págs. 219-221) é a Parábola do Caminho Branco Entre os Dois Rios (Jap. Niga Byakudô). Limito-me a apresentar aqui um breve resumo:
Um viandante caminha sozinho por uma planície deserta, na direção leste-oeste. De repente, vê à sua frente dois rios que impedem seu caminho, um rio de fogo ao sul e um rio de água ao norte, ambos largos e profundos. Entre os dois, um estreito caminho branco, medindo não mais que quatro ou cinco polegadas de largura, é constantemente varrido pelas águas e pelas chamas e conduz à margem ocidental. O viandante, que vinha sendo perseguido por feras e bandidos, se encontra só diante desse obstáculo. Ele se vê num impasse. Se parar, será pego pelas feras e pelos malfeitores. Se avançar, perecerá engolido pelas águas ou pelas chamas. De qualquer forma, opta por tentar a travessia. Ouve então uma voz proveniente da margem oriental onde ele se encontra que lhe brada:
– Amigo! Prossiga por este caminho com determinação, pois ele é o único! Não há nenhum perigo de morte! Se você se detiver, certamente morrerá!
E da margem ocidental também alguém o chama, dizendo:
– Siga! Vá direto em frente com o pensamento correto e o coração unificado! Eu o protegerei! Não tema de maneira alguma o risco de cair na água ou no fogo!
Animado por essas duas exortações, o homem se dispõe a prosseguir. Mal dá dois passos, ouve as vozes dos perseguidores que tentam dissuadi-lo:
– Volte, amigo! Esse caminho é perigoso, você não conseguirá atravessá-lo! Você certamente irá morrer! Fique conosco, não lhe faremos mal!
O homem segue em frente, concentrando-se no caminho, surdo a esses apelos. Em um instante atinge a outra margem onde um amigo o espera, liberto para sempre das dificuldades que o afligiam.
A margem oriental é o mundo profano em que vivemos, a margem ocidental é a Terra Pura da Suprema Felicidade. Os bandidos e as feras que fingem ser amigos são os órgãos dos sentidos, os agregados psicofísicos e os elementos materiais de que são compostos os seres viventes e o mundo em que vivem. A planície deserta representa o fato de que em nossa vida seguimos sempre os maus amigos, em vez dos bons. Os rios de água e fogo são o desejo e a cólera que impulsionam os seres viventes. O estreito caminho branco é um pensamento puro a almejar pelo Ir-Nascer na Terra Pura, que se manifesta em meio aos torvelinhos de desejo e cólera. O percurso leste-oeste seguido pelo viandante é a orientação das práticas do mesmo para o Ir-Nascer na Terra Pura do Ocidente. O brado que o interpela a partir da margem oriental é a voz do Buda Sakyamuni, perpetuada nos Sutras. O chamado que ecoa a partir da margem ocidental é a intenção salvífica do Voto Original de Amida. Os bandidos que tentam dissuadir o viandante de prosseguir são os seres humanos apegados a concepções e práticas errôneas, que em vão apregoam suas falsas doutrinas. A libertação atingida pelo homem ao alcançar a margem ocidental é libertação final dos nascimentos e mortes e o amigo que ele encontra é o Buda.
Nessa parábola parecem ecoar ressonâncias da escatologia do Zoroastrismo da Pérsia, em que encontramos a travessia da estreita ponte de Cinvat que a alma deve fazer guiada pela figura feminina da Daena. Esta aparece aos olhos do homem virtuoso como uma belíssima donzela de dezesseis anos que o conduz em segurança à outra margem. O homem perverso, porém, a verá como uma megera horrorosa que o fará cair no abismo em baixo da ponte. Em uma escritura apócrifa do Judaísmo, o Segundo Livro de Esdras, existe uma imagem parecida:
Outro exemplo: há uma cidade construída e erguida numa planície, ela está cheia de coisas boas.
Entretanto, sua entrada é estreita, sobre um precipício; há água do lado direito e fogo do lado esquerdo.
Existe um único caminho que passa entre os dois, isto é, entre o fogo e a água, tão estreito que apenas um homem sozinho consegue atravessá-lo.
Se agora essa cidade for oferecida a um homem como herança, como poderá ele entrar na posse da mesma, a não ser transpondo a perigosa passagem diante dele?
(II Esdras 7, 6-9)
Lembro ainda que a passagem através do fogo e da água é um tema iniciático presente em vários contextos, como, por exemplo, na ópera A Flauta Mágica de Mozart.