Parábola do Caminho Branco Entre os Dois Rios:

Outra célebre passagem de Shan-tao transcrita por Shinran (cf. Seiten, págs. 219-221) é a Parábola do Caminho Branco Entre os Dois Rios (Jap. Niga Byakudô). Limito-me a apresentar aqui um breve resumo:

Um viandante caminha sozinho por uma planície deserta, na direção leste-oeste. De repente, vê à sua frente dois rios que impedem seu caminho, um rio de fogo ao sul e um rio de água ao norte, ambos largos e profundos. Entre os dois, um estreito caminho branco, medindo não mais que quatro ou cinco polegadas de largura, é constantemente varrido pelas águas e pelas chamas e conduz à margem ocidental. O viandante, que vinha sendo perseguido por feras e bandidos, se encontra só diante desse obstáculo. Ele se vê num impasse. Se parar, será pego pelas feras e pelos malfeitores. Se avançar, perecerá engolido pelas águas ou pelas chamas. De qualquer forma, opta por tentar a travessia. Ouve então uma voz proveniente da margem oriental onde ele se encontra que lhe brada:

– Amigo! Prossiga por este caminho com determinação, pois ele é o único! Não há nenhum perigo de morte! Se você se detiver, certamente morrerá!

E da margem ocidental também alguém o chama, dizendo:

– Siga! Vá direto em frente com o pensamento correto e o coração unificado! Eu o protegerei! Não tema de maneira alguma o risco de cair na água ou no fogo!

Animado por essas duas exortações, o homem se dispõe a prosseguir. Mal dá dois passos, ouve as vozes dos perseguidores que tentam dissuadi-lo:

– Volte, amigo! Esse caminho é perigoso, você não conseguirá atravessá-lo! Você certamente irá morrer! Fique conosco, não lhe faremos mal!

O homem segue em frente, concentrando-se no caminho, surdo a esses apelos. Em um instante atinge a outra margem onde um amigo o espera, liberto para sempre das dificuldades que o afligiam.

A margem oriental é o mundo profano em que vivemos, a margem ocidental é a Terra Pura da Suprema Felicidade. Os bandidos e as feras que fingem ser amigos são os órgãos dos sentidos, os agregados psicofísicos e os elementos materiais de que são compostos os seres viventes e o mundo em que vivem. A planície deserta representa o fato de que em nossa vida seguimos sempre os maus amigos, em vez dos bons. Os rios de água e fogo são o desejo e a cólera que impulsionam os seres viventes. O estreito caminho branco é um pensamento puro a almejar pelo Ir-Nascer na Terra Pura, que se manifesta em meio aos torvelinhos de desejo e cólera. O percurso leste-oeste seguido pelo viandante é a orientação das práticas do mesmo para o Ir-Nascer na Terra Pura do Ocidente. O brado que o interpela a partir da margem oriental é a voz do Buda Sakyamuni, perpetuada nos Sutras. O chamado que ecoa a partir da margem ocidental é a intenção salvífica do Voto Original de Amida. Os bandidos que tentam dissuadir o viandante de prosseguir são os seres humanos apegados a concepções e práticas errôneas, que em vão apregoam suas falsas doutrinas. A libertação atingida pelo homem ao alcançar a margem ocidental é libertação final dos nascimentos e mortes e o amigo que ele encontra é o Buda.

Nessa parábola parecem ecoar ressonâncias da escatologia do Zoroastrismo da Pérsia, em que encontramos a travessia da estreita ponte de Cinvat que a alma deve fazer guiada pela figura feminina da Daena. Esta aparece aos olhos do homem virtuoso como uma belíssima donzela de dezesseis anos que o conduz em segurança à outra margem. O homem perverso, porém, a verá como uma megera horrorosa que o fará cair no abismo em baixo da ponte. Em uma escritura apócrifa do Judaísmo, o Segundo Livro de Esdras, existe uma imagem parecida:

Outro exemplo: há uma cidade construída e erguida numa planície, ela está cheia de coisas boas.

Entretanto, sua entrada é estreita, sobre um precipício; há água do lado direito e fogo do lado esquerdo.

Existe um único caminho que passa entre os dois, isto é, entre o fogo e a água, tão estreito que apenas um homem sozinho consegue atravessá-lo.

Se agora essa cidade for oferecida a um homem como herança, como poderá ele entrar na posse da mesma, a não ser transpondo a perigosa passagem diante dele?

(II Esdras 7, 6-9)

Lembro ainda que a passagem através do fogo e da água é um tema iniciático presente em vários contextos, como, por exemplo, na ópera A Flauta Mágica de Mozart.